O Território Sagrado
(Este texto foi ao ar na sexta, 20/05, na www.radiocoringao.com.br, no programa "100 Anos de História")
Vivemos uma época duvidosa no Futebol que acostumaram a chamar de “moderno”, que significa o fim de uma era no Futebol, e vem sendo tramado há algum tempo.
Começou quando fizeram o desfavor de relacionar Arquibancada, nosso território sagrado, com a violência.
Estávamos em meados da década de 80. Era o auge das Festas Democráticas nas Arquibancadas Corinthianas.
E essa Festa era comum a todos os clubes do Brasil. A Arquibancada era o Território Sagrado da celebração. E também da articulação.
Quanto sobressalto no coraçãozinho oco do poder público corrompido causou a Organização dos Valentes Gaviões, por exemplo.
Cito os Gaviões de Flavio La Selva e Alcides Piva, pois são os maiores, e melhores, exemplos disso onde queremos chegar.
Uma torcida que levantava faixas para anistia, que interferia nos destinos do próprio Clube, bem poderia começar a articular algo mais perigoso e subversivo.
O ideal formador de Flavio era cumprido à risca.
Mas nossa sociedade passava por graves crises.
Da época da ditadura o nosso povo saiu bastante emburrecido. A educação havia sido definitivamente jogada no limbo.
A insatisfação popular era imensa. Quem viveu aquela época sabe. Raulzito cantava: “eh, anos oitenta, charrete que perdeu o condutor”.
Mas as Arquibancadas seguiam sendo o recreio de nossas Lutas diárias, custavam o preço justo que permitia o Povo freqüentar.
O festival de faixas de bairros não me deixa mentir.
São Miguel, São Matheus, Brasilândia, Tucuruvi, Capão Redondo, Grajaú, Guaianazes, Cotia, Osasco, Jandira, Embu, etc etc etc, todas as periferias podiam participar da Festa.
E todas elas chegavam, firmes e fortes.
Mas o legado dos milicos foi avassalador. O comportamento do cidadão brasileiro estava mudado, e as novas gerações cresciam mais na pobreza e na marginalização que nunca.
Da insatisfação à revolta.
E as Arquibancadas muitas vezes se viram como palco para guerras. Significavam nada menos que a potencialização da deseducação, que este legado continha. A chamada “violência” é, portanto, fruto de um estado que não enxerga seu povo.
Mas a mentira contada mil vezes passa a ser uma verdade, segundo a nazi propaganda.
E a violência, gestada no seio do próprio poder público corrompido, acabou recaindo sobre a Arquibancada, que não tem e nunca terá culpa nenhuma.
Entramos nos anos 90, e a Arquibancada sendo achincalhada como lugar de violência. Mas isso também não colava na idéia de quem era mais atento.
O poder público forjou, então, um episódio emblemático.
Marcaram um porco versus bambi, portões abertos, em um Pacaembu em reformas.
Todos os materiais disponíveis para quem quisesse usufruir: pau, pedra, barra de ferro. Tudo o que era preciso para gerar uma definitiva e exemplar guerra campal, que serviria de anúncio e cartaz para a tão propalada “violência nos estádios”.
Como se essa violência não tivesse sido gestada nos porões do DOPS na década de setenta, na desescolarização e empobrecimento do Povo ao longo das décadas seguintes, como se essa violência não fosse observável a olho nu e sentida na pele em cada rua de cada cidade deste país.
Como se essa violência não fosse inerente ao próprio Povo, que entrava no seu recreio de lutas, a Arquibancada, já com toda a carga de revolta que trazia da própria vida.
Ah, mas é muito mais fácil arrumar um bode expiatório, não é?
Ainda mais quando a finalidade real era acabar com o incômodo da articulação popular que o Futebol causa, uma arruaça carnavalesca semanal que significava a Festa mais popular e democrática.
E que pelo próprio espírito do Futebol, de ser simulação de guerra, acabava descambando em uma sociedade violenta por natureza.
A Arquibancada nunca teve culpa nenhuma. Culpada foi a sociedade que não percebeu o golpe que estava sendo iniciado. Um golpe de dentro de sua própria cultura.
A sociedade é reproduzida na Arquibancada, nada mais natural. No entanto, as possibilidades que a articulação de uma torcida proporciona são muito mais fortes que numa turma de colégio, por exemplo. Muito mais que numa turma de clube, de rua. É como se cada turma estivesse reunida numa grandiosa assembléia de festa.
E a sociedade, ali, é inteiramente reproduzida, refeita e remodelada. A Arquibancada teve essa função, que é a mesma função das Artes e da própria Filosofia; na Arquibancada, ao contrário do que dizem por aí, o sujeito pensa.
O sujeito toma conhecimento de diversos personagens desse imenso teatro chamado sociedade. Se estivessem numa fila de banco, os freqüentadores da Arquibancada não se conheceriam. Eis o papel formador da Arquibancada.
E isto, caros ouvintes, causa frisson, ardor no sfincter do poder público corrompido.
Futebol é público, e tudo que é público é político.
E então voltamos ao começo dos anos noventa.
Nessa época as batalhas se tornavam rotineiras em todos os estádios. A marginalização cria a criminalização. E as organizadas cumpriam o papel de estado dentro naquele micro universo que é a Arquibancada.
Alguém aí já deve ter parado para pensar ‘como é que aconteceu das arquibancadas, que era território livre até a década de sessenta, passando pelo período das cordas em 70 e 80, chegarem à separação completa na década de 90?’, e pior; hoje em dia tem gente que nem vai a estádio e acha que deveria ter torcida única...
Pois foi esse o papel do poder público corrompido; o de cercear as ações que representam uma Cultura popular, contidas na Arquibancada.
Cada passo desse cerceamento, ao longo do tempo, é o exemplo cabal de como se tratam das coisas públicas nesse país.
E cada passo nos foi apresentado como uma solução, sem a qual não poderíamos mais conviver.
Mas cada passo foi na verdade uma rasteira bem dada, em uma sociedade que dormia.
E a cada passo em direção à segregação, estava sendo alimentado monstro da intolerância. Se até os anos 60 sentavam-se lado a lado os adversários, nos anos 90 isso era mera lembrança dos pais e avós.
Mas não estou fazendo mera apologia ao passado, de jeito nenhum. Até porque no passado não se sentavam lado a lado sem faíscas, os adversários. E a violência é tão inerente ao Futebol, quanto é para o espírito humano.
E aqui estamos fazendo um histórico do desenvolvimento da farsa da violência nos estádios, e as implicações que vemos nos tempos atuais, mas chegaremos lá.
O Futebol já foi passatempo para a aristocracia. O Corinthians, com sua Revolução de março de 1913, tirou da aristocracia a posse do futebol.
Ele virou coisa séria a partir desse momento, pois o Clube do Povo chegou pra ficar e Ele é a nossa razão de vida.
Os reacionários, por sua vez, tomaram a antítese dessa nossa Razão de vida como razão de vida deles. O Corinthians gerou a anticorintianada, com seu arco-íris de cores e matizes variados.
E desde então a intenção é que o Futebol volte a ser passatempo aristocrata, e essa seria a pior anticorintiania possível.
E ela está acontecendo a passos largos, sem que ninguém se atente.
Estávamos no começo da década de 90, e o episódio emblemático forjado pelo poder público corrompido, que desenhava o futuro do Futebol na direção do passatempo.
Em contraposição ao exemplo Corinthianista de Razão de Vida.
Marcaram um porco versus bambi, portões abertos, em um Pacaembu em reformas.
Todos os materiais disponíveis para quem quisesse usufruir: pau, pedra, barra de ferro. Tudo o que era preciso para gerar uma definitiva e exemplar guerra campal, que serviria de anúncio e cartaz para a tão propalada “violência nos estádios”.
Palco pronto para a guerra, só foi preciso acender o pavio.
Um pavio que iria acender muitas baterias, até muito tempo depois.
E se a violência da sociedade era expressa na Arquibancada, como a própria sociedade sempre é expressa na Arquibancada, mesmo atualmente, era preciso pegar alguém para bode expiatório, fazer dele o réu, e aplicar a injeção do elitismo, que em pouco tempo tudo estaria determinado, como hoje vemos que está.
Desse exemplo emblemático que foi a guerra campal temos o seguinte: o jogo, válido pela supercopa de Junior da Federação Paulista, em 20 de agosto de 1995, seria a preliminar para o jogo do Corinthians. Só que além de portões abertos, colocariam as três torcidas da cidade em confronto.
A torcida Corinthiana sequer chegou ao Pacaembu naquele dia. O caldo entornou de uma maneira que, talvez, nem os autores daquela planejadíssima patifaria, imaginavam. Ou imaginavam, sim. Eu não duvido de mais nada.
Fato é que ali ficou latente contra quem estava o próprio poder público; as organizadas foram o bode expiatório. Mesmo exercendo o papel de poder público na Arquibancada – e digo isso pensando nos Gaviões de Flavio La Selva, não nas duas torcidinhas que entraram em confronto e caíram na arapuca, determinando negativamente todo o futuro que se seguiria.
O poder público não podia assumir o estado falimentar em que se encontrava a cidadania e a educação. Não podia assumir o que estava sendo armado e provocado. E toda a imprensa fez com que a opinião pública passasse a criminalizar as organizadas, como se fosse um punhado de torcidas que tivesse a culpa.
Nossa sociedade se acostumou ao simplismo do bode expiatório, se acostumou a criminalizar o que não consegue entender direito, e se acostumou a fechar os olhos para as origens de todo o problema. Pois todos os experts que começaram a soltar a artilharia pra cima das organizadas tinham apenas um discurso, igual ao discurso inútil e irreal de abutres do naipe de um Flavio da prado, por exemplo.
O engraçado da coisa toda é que esses tais experts não pisavam no cimento da Arquibancada e falavam daquilo que não tinham idéia do que era para um público que precisava criminalizar algo, um público pronto pra receber as mentiras sensacionalistas e propagarem ela a torto e a direito.
E foi assim que a Arquibancada, razão de vida, passou a ser tachada de lugar de marginais.
Ah, nossa boa e Velha Arquibancada...
O que fizeram dela?
Depois desse episódio emblemático, todas as organizadas, ou pior ainda, todo material que fizesse alusão a alguma torcida, passou a ser criminalizado.
Tentaram banir as organizadas na base da proibição.
Mas a Constituição não permite que se faça esse tipo de atrocidade antidemocrática, embora a promotoria pública se regozijasse na possibilidade de tornar aquele grotesco circo da criminalização das torcidas em um palanque eleitoral.
Mastro de bandeira, fogos de artifício e cerveja foram as peças-chaves encontradas pelos assanhados proibidores, depois de perceberem que aquilo tudo era de fato inconstitucional.
Mas nesses governos que tivemos aqui nesse estado – sim, porque tudo isso acontecia aqui em São Paulo – os materiais alusivos às organizadas entravam no pacote.
De todas, a torcida que mais sofreu com essas proibições, e ao mesmo tempo, a que melhor resistiu, foi justamente o Gaviões.
Foi através dos Gaviões que as organizadas puderam voltar na primeira década deste novo milênio.
Mas o que tem de ficar, desta narrativa toda, não é apenas o papel das organizadas na criminalização da Arquibancada, mas a inconseqüente, inevitável e perigosa elitização que isso causa.
O próximo passo depois do episódio emblemático foi colocarem cadeiras onde outrora foi apenas cimento de Arquibancada.
É porque a organização e a articulação da Arquibancada é a maior resistência possível contra a elitização. O papo da violência fez com que a opinião pública cacifasse, sem ter nem idéia do que estava fazendo, essa elitização perniciosa, venenosa.
A articulação é o inverso da elitização. A elitização é a contramão da articulação.
Só se elitiza quando se é muito desavisado, e é esse o caso de nossa sociedade, deslumbrada com marquetagens e modernices sem conteúdo.
Os que criminalizaram a Arquibancada nunca vivenciaram Arquibancada. Mas o poder público conseguiu fazer do assunto a pauta sensacionalista que precisavam para fazer do Futebol aquele mero passatempo babaca para plutocratas. Como era no velódromo. No velódromo, o cara pagava o equivalente a 50 reais pela geral, 500 pela cadeira. Quase igual a hoje em dia, e assustadoramente a mesma mixórdia.
E quando entrou o Corinthians com seu povo que tirava do leite das crianças a grana pra bancar um lugar ali, para ver o Corinthians entrar na Liga dos engomadinhos e Revolucionar o Futebol para sempre, aquela plutocracia tremeu nas bases.
Mas ao invés de borrar só as calças, passaram a borrar as próprias idéias quando falavam de Corinthians.
Coisa semelhante aconteceu quando criminalizaram as torcidas.
Até porque, se sentindo criminalizados, é que os moleques das torcidas começaram a fazer as piores atrocidades, e começaram a alimentar abutre com carniça. E isso desde muito antes do episódio emblemático forjado. E, principalmente, também muito longe das Arquibancadas. A coisa marginalizada encanta aquele de espírito revoltoso.
E briga de torcida passou a ser confundida com brigas de gangue, de rua, de áreas rivais.
O prato era cheio para o poder público corrompido. Envolvia uma resposta inclusive a essa coisa das gangues, na época, e misturava tudo num mesmo caldeirão, entregando a atitude pronta para a sociedade; “vamos combater essa marginália”.
Do mesmíssimo jeito que a anticorintianada tratava aquele intruso em 1913.
E nisso tudo está a abutraiada, a assessoria de imprensa do poder público corrompido.
E desde muito cedo, o olho que tudo vê, viu que a elitização significava mais televisores ligados na sua programação.
O poder público, que quer o futebol como passatempo aristocrata, e o olho que tudo vê, casaram as mesmas idéias. E a quase duas décadas vemos o domínio do olho que tudo vê.
É ele que nos faz chegarmos em casa na madrugada, se conseguirmos pegar metrô e ônibus.
É ele que dá ao nosso povo o antifutebol. O futebol pasteurizado, encaixotado, que pode até ser mediocremente assistido, mas jamais vivido na sua completude. Pois se você não é jogador, dirigente, árbitro, só pode ser torcedor, e lugar de torcedor é na Arquibancada. E não na frente de uma tela, de fazer a minhoca da cabeça dar nó.
É na Arquibancada que se vive o Futebol. E é isto, justamente isto, que estão tirando de nós.
De todos nós.
Ninguém aí parou pra pensar o que significa essa pataquada de padrão FIFA?
E quais as implicações disso tudo?...
(Este desfecho foi escrito pelo Samurai)
"Entender a importância e levar adiante todo o legado que Tantã deixou é saber de nosso papel daqui para frente. O Corinthians, nesse primeiro ano de seu segundo Centenário, passa por uma crise que vai além das pífias apresentações do time principal em campo. Aliás, esses fracassos recentes são nada mais que o reflexo do abandono à causa corinthiana iniciada em 1910. O mais materialista dos homens se rende à Mística Corinthiana por conta da complexidade de forças que atuam em torno de nosso querido clube e, dessa forma, quando esse mesmo homem esquece de onde veio, o calo começa a apertar.
Falei em nosso e o Corinthians é nosso mesmo. Nosso e impessoal, como queria Tantã. Não ter essa concepção é atitude passível de severa punição - lembremos o caso de um garoto que quis processar o Corinthians para levar uma graninha sobre a música "Bando de Loucos", cuja pena foi o auto-exílio das arquibancadas, porque nunca mais foi visto por lá. O "nosso" em questão, portanto, tem o sentido mais puro da coletividade, tão próximo às origens alvinegras.
Voltemos, então, ao que é nitidamente visível e necessário ao Corinthians de hoje. De tempos em tempos, como aconteceu com Tantã e conforme foi renovado pelos Gaviões da Fiel em sua criação, carecemos de uma transformação guiada pelo desprendimento total do individualismo. Lideranças, sempre escolhidas por todos como o representante de um pensamento coletivo, são apenas para que se dialogue com o mundo exterior. Precisamos nos mobilizar, seja nas ruas, na escola, na faculdade, no trabalho, dentro do clube e nos estádios, e nos guiar pelo pensamento único de um Corinthians para todos.
Como pingo d'água em pedra, é preciso repetir a faceta transgressora do Corinthians e aplicá-la num ponto de vista que abrange as relações político-sociais de forma ampla. Nota-se tal função desde a fundação até quando derrubamos o inominável ditador que há pouco fazia das suas no Parque São Jorge, naquilo que pode ser considerado o último levante da Fiel Torcida. O Corinthians nasceu para subverter a ordem e mostrar a força da união do povo. Somos, por exemplo, a única torcida reconhecidamente atuante na luta contra a ditadura militar. Somos, desde que o mundo é mundo, o maior movimento social do mundo.
De maneira que levar adiante esse legado servirá não só ao nosso renascimento, mas também no combate à doença altamente infecciosa conhecida como futebol moderno. Por causa dos preceitos da modernidade, derrubam impunemente monumentos eternos como o Maracanã, o Maior do Mundo. É para atender a demandas mercadológicas que se enjaula torcedores organizados e se valoriza o descompromissado 'torcedor bunda no sofá'. A modernidade torna comum e aceitável o fato dos meios de comunicação oficial do Corinthians, como esta gloriosa Rádio Coringão e também a TV Corinthians, serem preteridos pela própria diretoria em benefício a uma emissora que ganha rios de dinheiro às nossas custas. Esse novo processo de civilização europeizado foi quem retirou as barracas de pernil da frente do Pacaembu e a cerveja vendida nos bares da parte interna, elementos essenciais para a socialização do torcedor antes e depois dos jogos.
Diante desse cenário desolador, Tantã, La Selva e todos os ancestrais e guerreiros, conhecidos ou anônimos, ficariam orgulhosos se, no peito de cada um de nós, reacendesse a chama contestadora típica de todo corinthiano. Querem nos isolar, querem nos calar, querem que a gente fique batendo palminhas hipócritas a cada decepção, quando na verdade deveríamos aprender com os erros por novas conquistas. Retiram nossos direitos pouco a pouco, forçando os limites e dando risada dos que ainda tentam resistir, como se fôssemos utópicos. Ora, o Corinthians é a própria utopia e desdenhar de utopias é desdenhar do Corinthians.
Devemos assumir a demanda que nos foi destinada em troca do privilégio de ser Corinthians.
Começou quando fizeram o desfavor de relacionar Arquibancada, nosso território sagrado, com a violência.
Estávamos em meados da década de 80. Era o auge das Festas Democráticas nas Arquibancadas Corinthianas.
E essa Festa era comum a todos os clubes do Brasil. A Arquibancada era o Território Sagrado da celebração. E também da articulação.
Quanto sobressalto no coraçãozinho oco do poder público corrompido causou a Organização dos Valentes Gaviões, por exemplo.
Cito os Gaviões de Flavio La Selva e Alcides Piva, pois são os maiores, e melhores, exemplos disso onde queremos chegar.
Uma torcida que levantava faixas para anistia, que interferia nos destinos do próprio Clube, bem poderia começar a articular algo mais perigoso e subversivo.
O ideal formador de Flavio era cumprido à risca.
Mas nossa sociedade passava por graves crises.
Da época da ditadura o nosso povo saiu bastante emburrecido. A educação havia sido definitivamente jogada no limbo.
A insatisfação popular era imensa. Quem viveu aquela época sabe. Raulzito cantava: “eh, anos oitenta, charrete que perdeu o condutor”.
Mas as Arquibancadas seguiam sendo o recreio de nossas Lutas diárias, custavam o preço justo que permitia o Povo freqüentar.
O festival de faixas de bairros não me deixa mentir.
São Miguel, São Matheus, Brasilândia, Tucuruvi, Capão Redondo, Grajaú, Guaianazes, Cotia, Osasco, Jandira, Embu, etc etc etc, todas as periferias podiam participar da Festa.
E todas elas chegavam, firmes e fortes.
Mas o legado dos milicos foi avassalador. O comportamento do cidadão brasileiro estava mudado, e as novas gerações cresciam mais na pobreza e na marginalização que nunca.
Da insatisfação à revolta.
E as Arquibancadas muitas vezes se viram como palco para guerras. Significavam nada menos que a potencialização da deseducação, que este legado continha. A chamada “violência” é, portanto, fruto de um estado que não enxerga seu povo.
Mas a mentira contada mil vezes passa a ser uma verdade, segundo a nazi propaganda.
E a violência, gestada no seio do próprio poder público corrompido, acabou recaindo sobre a Arquibancada, que não tem e nunca terá culpa nenhuma.
Entramos nos anos 90, e a Arquibancada sendo achincalhada como lugar de violência. Mas isso também não colava na idéia de quem era mais atento.
O poder público forjou, então, um episódio emblemático.
Marcaram um porco versus bambi, portões abertos, em um Pacaembu em reformas.
Todos os materiais disponíveis para quem quisesse usufruir: pau, pedra, barra de ferro. Tudo o que era preciso para gerar uma definitiva e exemplar guerra campal, que serviria de anúncio e cartaz para a tão propalada “violência nos estádios”.
Como se essa violência não tivesse sido gestada nos porões do DOPS na década de setenta, na desescolarização e empobrecimento do Povo ao longo das décadas seguintes, como se essa violência não fosse observável a olho nu e sentida na pele em cada rua de cada cidade deste país.
Como se essa violência não fosse inerente ao próprio Povo, que entrava no seu recreio de lutas, a Arquibancada, já com toda a carga de revolta que trazia da própria vida.
Ah, mas é muito mais fácil arrumar um bode expiatório, não é?
Ainda mais quando a finalidade real era acabar com o incômodo da articulação popular que o Futebol causa, uma arruaça carnavalesca semanal que significava a Festa mais popular e democrática.
E que pelo próprio espírito do Futebol, de ser simulação de guerra, acabava descambando em uma sociedade violenta por natureza.
A Arquibancada nunca teve culpa nenhuma. Culpada foi a sociedade que não percebeu o golpe que estava sendo iniciado. Um golpe de dentro de sua própria cultura.
A sociedade é reproduzida na Arquibancada, nada mais natural. No entanto, as possibilidades que a articulação de uma torcida proporciona são muito mais fortes que numa turma de colégio, por exemplo. Muito mais que numa turma de clube, de rua. É como se cada turma estivesse reunida numa grandiosa assembléia de festa.
E a sociedade, ali, é inteiramente reproduzida, refeita e remodelada. A Arquibancada teve essa função, que é a mesma função das Artes e da própria Filosofia; na Arquibancada, ao contrário do que dizem por aí, o sujeito pensa.
O sujeito toma conhecimento de diversos personagens desse imenso teatro chamado sociedade. Se estivessem numa fila de banco, os freqüentadores da Arquibancada não se conheceriam. Eis o papel formador da Arquibancada.
E isto, caros ouvintes, causa frisson, ardor no sfincter do poder público corrompido.
Futebol é público, e tudo que é público é político.
E então voltamos ao começo dos anos noventa.
Nessa época as batalhas se tornavam rotineiras em todos os estádios. A marginalização cria a criminalização. E as organizadas cumpriam o papel de estado dentro naquele micro universo que é a Arquibancada.
Alguém aí já deve ter parado para pensar ‘como é que aconteceu das arquibancadas, que era território livre até a década de sessenta, passando pelo período das cordas em 70 e 80, chegarem à separação completa na década de 90?’, e pior; hoje em dia tem gente que nem vai a estádio e acha que deveria ter torcida única...
Pois foi esse o papel do poder público corrompido; o de cercear as ações que representam uma Cultura popular, contidas na Arquibancada.
Cada passo desse cerceamento, ao longo do tempo, é o exemplo cabal de como se tratam das coisas públicas nesse país.
E cada passo nos foi apresentado como uma solução, sem a qual não poderíamos mais conviver.
Mas cada passo foi na verdade uma rasteira bem dada, em uma sociedade que dormia.
E a cada passo em direção à segregação, estava sendo alimentado monstro da intolerância. Se até os anos 60 sentavam-se lado a lado os adversários, nos anos 90 isso era mera lembrança dos pais e avós.
Mas não estou fazendo mera apologia ao passado, de jeito nenhum. Até porque no passado não se sentavam lado a lado sem faíscas, os adversários. E a violência é tão inerente ao Futebol, quanto é para o espírito humano.
E aqui estamos fazendo um histórico do desenvolvimento da farsa da violência nos estádios, e as implicações que vemos nos tempos atuais, mas chegaremos lá.
O Futebol já foi passatempo para a aristocracia. O Corinthians, com sua Revolução de março de 1913, tirou da aristocracia a posse do futebol.
Ele virou coisa séria a partir desse momento, pois o Clube do Povo chegou pra ficar e Ele é a nossa razão de vida.
Os reacionários, por sua vez, tomaram a antítese dessa nossa Razão de vida como razão de vida deles. O Corinthians gerou a anticorintianada, com seu arco-íris de cores e matizes variados.
E desde então a intenção é que o Futebol volte a ser passatempo aristocrata, e essa seria a pior anticorintiania possível.
E ela está acontecendo a passos largos, sem que ninguém se atente.
Estávamos no começo da década de 90, e o episódio emblemático forjado pelo poder público corrompido, que desenhava o futuro do Futebol na direção do passatempo.
Em contraposição ao exemplo Corinthianista de Razão de Vida.
Marcaram um porco versus bambi, portões abertos, em um Pacaembu em reformas.
Todos os materiais disponíveis para quem quisesse usufruir: pau, pedra, barra de ferro. Tudo o que era preciso para gerar uma definitiva e exemplar guerra campal, que serviria de anúncio e cartaz para a tão propalada “violência nos estádios”.
Palco pronto para a guerra, só foi preciso acender o pavio.
Um pavio que iria acender muitas baterias, até muito tempo depois.
E se a violência da sociedade era expressa na Arquibancada, como a própria sociedade sempre é expressa na Arquibancada, mesmo atualmente, era preciso pegar alguém para bode expiatório, fazer dele o réu, e aplicar a injeção do elitismo, que em pouco tempo tudo estaria determinado, como hoje vemos que está.
Desse exemplo emblemático que foi a guerra campal temos o seguinte: o jogo, válido pela supercopa de Junior da Federação Paulista, em 20 de agosto de 1995, seria a preliminar para o jogo do Corinthians. Só que além de portões abertos, colocariam as três torcidas da cidade em confronto.
A torcida Corinthiana sequer chegou ao Pacaembu naquele dia. O caldo entornou de uma maneira que, talvez, nem os autores daquela planejadíssima patifaria, imaginavam. Ou imaginavam, sim. Eu não duvido de mais nada.
Fato é que ali ficou latente contra quem estava o próprio poder público; as organizadas foram o bode expiatório. Mesmo exercendo o papel de poder público na Arquibancada – e digo isso pensando nos Gaviões de Flavio La Selva, não nas duas torcidinhas que entraram em confronto e caíram na arapuca, determinando negativamente todo o futuro que se seguiria.
O poder público não podia assumir o estado falimentar em que se encontrava a cidadania e a educação. Não podia assumir o que estava sendo armado e provocado. E toda a imprensa fez com que a opinião pública passasse a criminalizar as organizadas, como se fosse um punhado de torcidas que tivesse a culpa.
Nossa sociedade se acostumou ao simplismo do bode expiatório, se acostumou a criminalizar o que não consegue entender direito, e se acostumou a fechar os olhos para as origens de todo o problema. Pois todos os experts que começaram a soltar a artilharia pra cima das organizadas tinham apenas um discurso, igual ao discurso inútil e irreal de abutres do naipe de um Flavio da prado, por exemplo.
O engraçado da coisa toda é que esses tais experts não pisavam no cimento da Arquibancada e falavam daquilo que não tinham idéia do que era para um público que precisava criminalizar algo, um público pronto pra receber as mentiras sensacionalistas e propagarem ela a torto e a direito.
E foi assim que a Arquibancada, razão de vida, passou a ser tachada de lugar de marginais.
Ah, nossa boa e Velha Arquibancada...
O que fizeram dela?
Depois desse episódio emblemático, todas as organizadas, ou pior ainda, todo material que fizesse alusão a alguma torcida, passou a ser criminalizado.
Tentaram banir as organizadas na base da proibição.
Mas a Constituição não permite que se faça esse tipo de atrocidade antidemocrática, embora a promotoria pública se regozijasse na possibilidade de tornar aquele grotesco circo da criminalização das torcidas em um palanque eleitoral.
Mastro de bandeira, fogos de artifício e cerveja foram as peças-chaves encontradas pelos assanhados proibidores, depois de perceberem que aquilo tudo era de fato inconstitucional.
Mas nesses governos que tivemos aqui nesse estado – sim, porque tudo isso acontecia aqui em São Paulo – os materiais alusivos às organizadas entravam no pacote.
De todas, a torcida que mais sofreu com essas proibições, e ao mesmo tempo, a que melhor resistiu, foi justamente o Gaviões.
Foi através dos Gaviões que as organizadas puderam voltar na primeira década deste novo milênio.
Mas o que tem de ficar, desta narrativa toda, não é apenas o papel das organizadas na criminalização da Arquibancada, mas a inconseqüente, inevitável e perigosa elitização que isso causa.
O próximo passo depois do episódio emblemático foi colocarem cadeiras onde outrora foi apenas cimento de Arquibancada.
É porque a organização e a articulação da Arquibancada é a maior resistência possível contra a elitização. O papo da violência fez com que a opinião pública cacifasse, sem ter nem idéia do que estava fazendo, essa elitização perniciosa, venenosa.
A articulação é o inverso da elitização. A elitização é a contramão da articulação.
Só se elitiza quando se é muito desavisado, e é esse o caso de nossa sociedade, deslumbrada com marquetagens e modernices sem conteúdo.
Os que criminalizaram a Arquibancada nunca vivenciaram Arquibancada. Mas o poder público conseguiu fazer do assunto a pauta sensacionalista que precisavam para fazer do Futebol aquele mero passatempo babaca para plutocratas. Como era no velódromo. No velódromo, o cara pagava o equivalente a 50 reais pela geral, 500 pela cadeira. Quase igual a hoje em dia, e assustadoramente a mesma mixórdia.
E quando entrou o Corinthians com seu povo que tirava do leite das crianças a grana pra bancar um lugar ali, para ver o Corinthians entrar na Liga dos engomadinhos e Revolucionar o Futebol para sempre, aquela plutocracia tremeu nas bases.
Mas ao invés de borrar só as calças, passaram a borrar as próprias idéias quando falavam de Corinthians.
Coisa semelhante aconteceu quando criminalizaram as torcidas.
Até porque, se sentindo criminalizados, é que os moleques das torcidas começaram a fazer as piores atrocidades, e começaram a alimentar abutre com carniça. E isso desde muito antes do episódio emblemático forjado. E, principalmente, também muito longe das Arquibancadas. A coisa marginalizada encanta aquele de espírito revoltoso.
E briga de torcida passou a ser confundida com brigas de gangue, de rua, de áreas rivais.
O prato era cheio para o poder público corrompido. Envolvia uma resposta inclusive a essa coisa das gangues, na época, e misturava tudo num mesmo caldeirão, entregando a atitude pronta para a sociedade; “vamos combater essa marginália”.
Do mesmíssimo jeito que a anticorintianada tratava aquele intruso em 1913.
E nisso tudo está a abutraiada, a assessoria de imprensa do poder público corrompido.
E desde muito cedo, o olho que tudo vê, viu que a elitização significava mais televisores ligados na sua programação.
O poder público, que quer o futebol como passatempo aristocrata, e o olho que tudo vê, casaram as mesmas idéias. E a quase duas décadas vemos o domínio do olho que tudo vê.
É ele que nos faz chegarmos em casa na madrugada, se conseguirmos pegar metrô e ônibus.
É ele que dá ao nosso povo o antifutebol. O futebol pasteurizado, encaixotado, que pode até ser mediocremente assistido, mas jamais vivido na sua completude. Pois se você não é jogador, dirigente, árbitro, só pode ser torcedor, e lugar de torcedor é na Arquibancada. E não na frente de uma tela, de fazer a minhoca da cabeça dar nó.
É na Arquibancada que se vive o Futebol. E é isto, justamente isto, que estão tirando de nós.
De todos nós.
Ninguém aí parou pra pensar o que significa essa pataquada de padrão FIFA?
E quais as implicações disso tudo?...
(Este desfecho foi escrito pelo Samurai)
"Entender a importância e levar adiante todo o legado que Tantã deixou é saber de nosso papel daqui para frente. O Corinthians, nesse primeiro ano de seu segundo Centenário, passa por uma crise que vai além das pífias apresentações do time principal em campo. Aliás, esses fracassos recentes são nada mais que o reflexo do abandono à causa corinthiana iniciada em 1910. O mais materialista dos homens se rende à Mística Corinthiana por conta da complexidade de forças que atuam em torno de nosso querido clube e, dessa forma, quando esse mesmo homem esquece de onde veio, o calo começa a apertar.
Falei em nosso e o Corinthians é nosso mesmo. Nosso e impessoal, como queria Tantã. Não ter essa concepção é atitude passível de severa punição - lembremos o caso de um garoto que quis processar o Corinthians para levar uma graninha sobre a música "Bando de Loucos", cuja pena foi o auto-exílio das arquibancadas, porque nunca mais foi visto por lá. O "nosso" em questão, portanto, tem o sentido mais puro da coletividade, tão próximo às origens alvinegras.
Voltemos, então, ao que é nitidamente visível e necessário ao Corinthians de hoje. De tempos em tempos, como aconteceu com Tantã e conforme foi renovado pelos Gaviões da Fiel em sua criação, carecemos de uma transformação guiada pelo desprendimento total do individualismo. Lideranças, sempre escolhidas por todos como o representante de um pensamento coletivo, são apenas para que se dialogue com o mundo exterior. Precisamos nos mobilizar, seja nas ruas, na escola, na faculdade, no trabalho, dentro do clube e nos estádios, e nos guiar pelo pensamento único de um Corinthians para todos.
Como pingo d'água em pedra, é preciso repetir a faceta transgressora do Corinthians e aplicá-la num ponto de vista que abrange as relações político-sociais de forma ampla. Nota-se tal função desde a fundação até quando derrubamos o inominável ditador que há pouco fazia das suas no Parque São Jorge, naquilo que pode ser considerado o último levante da Fiel Torcida. O Corinthians nasceu para subverter a ordem e mostrar a força da união do povo. Somos, por exemplo, a única torcida reconhecidamente atuante na luta contra a ditadura militar. Somos, desde que o mundo é mundo, o maior movimento social do mundo.
De maneira que levar adiante esse legado servirá não só ao nosso renascimento, mas também no combate à doença altamente infecciosa conhecida como futebol moderno. Por causa dos preceitos da modernidade, derrubam impunemente monumentos eternos como o Maracanã, o Maior do Mundo. É para atender a demandas mercadológicas que se enjaula torcedores organizados e se valoriza o descompromissado 'torcedor bunda no sofá'. A modernidade torna comum e aceitável o fato dos meios de comunicação oficial do Corinthians, como esta gloriosa Rádio Coringão e também a TV Corinthians, serem preteridos pela própria diretoria em benefício a uma emissora que ganha rios de dinheiro às nossas custas. Esse novo processo de civilização europeizado foi quem retirou as barracas de pernil da frente do Pacaembu e a cerveja vendida nos bares da parte interna, elementos essenciais para a socialização do torcedor antes e depois dos jogos.
Diante desse cenário desolador, Tantã, La Selva e todos os ancestrais e guerreiros, conhecidos ou anônimos, ficariam orgulhosos se, no peito de cada um de nós, reacendesse a chama contestadora típica de todo corinthiano. Querem nos isolar, querem nos calar, querem que a gente fique batendo palminhas hipócritas a cada decepção, quando na verdade deveríamos aprender com os erros por novas conquistas. Retiram nossos direitos pouco a pouco, forçando os limites e dando risada dos que ainda tentam resistir, como se fôssemos utópicos. Ora, o Corinthians é a própria utopia e desdenhar de utopias é desdenhar do Corinthians.
Devemos assumir a demanda que nos foi destinada em troca do privilégio de ser Corinthians.
Urge a Revolução Corinthiana."
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